sábado, 20 de abril de 2013



Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quando houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

 Ítaca - Konstantinos Kaváfis


quarta-feira, 17 de abril de 2013

    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    ( A. de Campos)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

claramente sou fraqueza.
maldade.
egoismo.
vileza.
covardia.
frieza que circula em cinco litros de fluidos de mim.
claramente sou paródia.
garrancho.
desconexão.
imperfeição.
desencontro.
claramente sou futilidade.
mentira.
superfície.
maquiagem.
teatro.
engano.
espasmos de um ser que mal se olha e nem enxerga o que vê.
claramente sou escuro.
penumbra.
decalque.
borrão.
impiedade.
dureza.
insanidade.
claramente sou teoria.
fantasia.
imagem.
prepotência.
intransigência.
vaidade.
uma triste melodia tocando em algum lugar em algum momento.
claramente sou falsete.
engodo.
caricatura.
fraude.
versão.
plágio.
desafinação.
claramente um rascunho de realidade debatendo-se.
claramente.
claramente.
claramente.


quarta-feira, 10 de abril de 2013


E a vida é um turbilhão.
Um furacão.
Um tango.
Um cão.
Um pastel de feira
sem eira.
Uma dissertação.
Um ditado inacabado.
Um palavrão
composto
por desconexão.
A vida é um navio.
Um rio.
Um deslize e um afago.
A contramão.
É o pôr-do-sol às duas da tarde.
O desencanto.
O encontro.
O aperto perfeito.
É a neve no trópico.
Vida é cena e direção.
Sim e o não.
O senão.
O estudo de tudo.
O trunfo.






sexta-feira, 5 de abril de 2013

Minha mania de dizer
quem sou.
Quem eu sou ou não,
nem eu mesma sei,
por definição.
Sou muito mais do que
minhas próprias
definições de mim.
O que sou ou não sou -
em palavras minhas -
em minha presença se esvazia.