quinta-feira, 5 de abril de 2012

Tô Só

Crônica de Hilda Hilst

      Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá
      de teta
      de azul
      de berimbau
      de doutora em letras?
      E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...
      Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?
      Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?
      nave
      ave
      moinho
      e tudo mais serei
      para que seja leve
      meu passo
      em vosso caminho.*
      Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.

* Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959.

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